"A menina e o terno" ou "Mandela vive" ou "Das coisas que se procura não entender"

Mais uma Quinta-feira escaldante marcava mais um dia de agonia pra menina que sentia que nesse ano nada dera certo.

O cansaço transmutado em exaustão era um fardo bem pesado pra carregar. Meio da semana. Mesmo assim, ela não esmorecia (apesar de que Esperança também não costuma ser leve... Os ombros também se cansam de esperar):

- Só mais dois dias! Só mais dois dias... – era um pensamento recorrente.

Em meio a tanto compromisso, obrigação e sacrifício, ela se tornava impassível. Procurava evitar pensar nas coisas que lhe tiravam do eixo – talvez fosse um alento aceitar coisas inaceitáveis com naturalidade. Cansaço. Preguiça de se mexer – acontece até com os mais engajados (uma hora a pilha acaba e a gente tem que trocar).

E foi naquela manhã “de quinta” que ela se lançou nos corredores do  Fórum da cidade. Quanto aos trajes, algo bem rebuscado - a sensação de derrotismo e incompreensão lhe fazia querer que as pessoas dissessem ao menos que ela estava bonita (já todo o resto costumava ser ignorado mesmo...).

A cereja do bolo era um terno. Não lhe pertencia, é verdade. Mas lhe caía muito bem para algo feito para vestir outrem. Grande mal do ser humano: ousar querer vestir as roupas dos outros sem saber se colocar em seus lugares. Ela soubera um dia, mas parecia estar se esquecendo.

E a cada passo sentia nos olhares que lançavam sobre a figura um crescente sentimento de estima e admiração. Não pelo trabalho que ela sempre realizara com esmero (independentemente da indumentária do dia), mas única e EXCLUSIVAMENTE  em razão da roupa que trajava.

Apertos de mão. Tapinhas nas costas.

- Bom dia Drª! Ainda por aqui entre nós, meros mortais? Eu achava que a senhora já tinha sido até promovida!

Drª... Senhora... Até semana passada ela era só mais uma estagiária pentelha perambulando, fazendo trapalhadas (responsáveis, diga-se de passagem) pelos órgãos do Poder Judiciário local.

Mas naquele dia ela era Drª. Por causa do terno. Sorriu ao desfrutar das regalias que uma roupa bem alinhada lhe proporcionara.

Depois se sentiu triste. E mal. E podre, ao ver os seus iguais (realmente iguais) serem preteridos por não se encaixarem nesse mundo ridículo de aparências, no qual uma roupa cara é capaz de abrir mais portas que um bom caráter ou uma presteza ímpar nos quefazeres da profissão.

Inconscientemente, lembrou Mandela. E automaticamente, se sentiu personificando o apartheid que divide o pestilento mundo jurídico entre “os com terno” e “os sem ternos” – duas categorias (de gente e não-gente) que não se misturam.

E nesse momento fora acometida de uma lancinante sensação de estar num limbo. Nem lá, nem cá – nem em lugar algum...

Sensação dolorosa. Tão dolorosa como viver uma farsa.

Mundo, mundo, vasto mundo de aparência. No qual ela deliberadamente ESCOLHEU viver. Doeu quando ela pensou nisso. Mas passou bem depressa. Há dores que são assim: servem só pra gente saber que não deveria admitir certas coisas – mas que são de súbita duração.

É que a gente é assim: costumamos dar pouca atenção pras dores que não doem no corpo. Quanto ás que doem na alma, dá pra ir enrolando. E disfarçando.. Sempre... Sempre e mais uma vez.

Naquele dia ela voltou pra casa se sentindo estranha. Uma atriz. Um personagem. Um brinquedo administrado por linhas. Que ela não sabe quem controla. E também não quer mais saber.

Ela só sabe que não quer mais isso – seja lá o que isso for.

 

#LCO