A QUEDA.

    Eu vou cair, ou melhor, eu estou caindo, nós estamos caindo, estas bem que poderiam ser as orações que nos representam, seres humanos do início do século XXI, o auge de nossa sociedade é ao mesmo um dos pontos mais baixos quanto à esperança de dias melhores, nossa sociedade declina sem se dar conta, inebriada pela ilusão do controle, enquanto no âmago de seus seres as pessoas deixam que se esvaia  a certeza de uma amanhã duradouro para seus descendentes. Mas a queda não é algo assim tão ruim, basta que se delimite, que se diga, que se desmitifique a queda, ou melhor, que se desmitifique a negação do “nada”, que na verdade constitui-se como uma verdade ainda não alcançada, ainda não revelada, ainda não realmente vista, uma palavra ainda traduzida de uma língua que ainda não ousou ser falda. Claro, quando esta queda permite o conhecimento, ou melhor, quando ela permite o reconhecimento: reconhecer o outro; reconhecer a natureza; reconhecer a verdade, reconhecer o ser e entender que o universo é um grande programa de informações concatenadas e conectadas, mesmo que sem uma razão aparente para existir, ou um sentido que valide nossas vidas, ainda assim estamos conectados com o sistema e não podemos nos furtar de tal fato. Não imagino o que venha a seguir, o espaço vazio, o abismo, o frio, e por fim o caos. Talvez nada disso, ou tudo isso de uma única vez, não tem como ter certeza, ainda mais para a falta de certeza.

 

    O caos que no princípio era tudo hoje é reduzido ao nada, é posto de lado, a escuridão do abismo que antes moldava o mundo hoje dá lugar á luz inebriante e perturbadora, motivado tudo isso pela escolha valorativa do Uno que se regozijou de sua criação, mas que no princípio também estava no caos, e nele reinava, em uma dimensão diferente dos seres imanados de sua essência, uma essência que por nós é desconhecida ou pelo menos ainda não compreendida, tal qual o caos, também não compreendida e que visto de perto é nada além de um nada desordenado, um conjunto disforme de fragmentos, um mundo que é jogado a nossos olhos, mas que no fundo e na verdade constitui a verdadeira ordem, que também não é compreendida e, portanto é mitificado como o nada. 

 

    Os sentidos são parciais, nada dizem que já não tenha sido dito antes, verdades também não deixam de serem meias-verdades, porque informam sempre por meio de uma ilusão, pois suas próprias bases são ilusórias, a fuga é constante, pois não se aceita a angústia de que não há verdades, a ilusão é tão inebriante e ilusória quanto a luz, sempre nos chamando, sibilando como as sereias, e assim o estrangeiro é levado a matar por ter estado na luz, assim também nós que somos levados a matar “o ser”, a não ver, por termos aceitado a luz que cega, que engana e que mascara.

 

 

    Enquanto penso nessas coisas continuo a cair, nós continuamos a cair, cada vez mais fundo, porém mais devagar, hoje não tento mais negar a queda, aceito-a e delicio-me com a paisagem, sentidos invertidos, questionamentos sem tempo para serem respondidos, pois precisariam de um tempo mais propício, pelo menos bem mais do que disponho, não importa se é uma ou se são vinte perguntas, não há tempo para nenhuma delas, é apenas o movimento constante de retorno ao início, que agora é fim e depois será novamente o início. E eu continuo a ver pelo vidro da janela. Por fim, é como aquela velha expressão religiosa: “como era no princípio, agora e sempre...” e no princípio era o nada.

 

 

#HAM23