Afinal, o que significa “vadiar” com o Direito? – Artigo de Dyego Phablo

Há alguns dias no Facebook coloquei um trecho da música de Charlie Brown Jr. – Céu Azul –, e tive um comentário que achei, digamos, interessante. Interessante no sentido de que, imediatamente, com o comentário, tive algumas ideias. Portanto, agradeço a quem comentou, pois acabou, sem querer, sendo o leitmotiv desse texto. Como diz o imortal Chaves: “foi sem querer querendo”.

Bom, como disse, postei a música Céu Azul do cantor. Não sou seu fã – aliás, nem me dou bem com essa palavra. Nunca fui. Nem quando era vivo. Muito menos agora. Apenas achei alguns trechos da música interessante e, por vontade e desejo, a postei. Mas não só: coloquei entre aspas um trecho da música – trecho que me aprazia, obviamente. E o trecho era esse: “Vamos viver, vadiar…”. O comentador – chamemo-lo assim – disse: “Bem sabemos onde parou esse estilo de vida…”. E eu repliquei: “Sei. Mas falei em outro sentido. Não dá pra explicar aqui neste espaço”. Mesmo assim, mesmo não entrando nos detalhes, mesmo não querendo aprofundar a discussão – por motivos que nem neste espaço interessa falar – coloquei um pequeno trecho de um artigo que estou fazendo sobre direito e literatura, para, talvez, ser compreendido: “(…) há também, ironicamente – pois a narrativa literária se configura de forma indisciplinada, como se fosse, parafraseando Warat, um circo mambembe, safado e marginal –, o caráter ‘didático’ da literatura em problematizarmos o Direito. Algumas questões são mais bem elucidadas e compreendidas através da literatura do que pelo próprio direito”. E fechei: “Vadiar, pra mim, é isso”.

E então, por que não vadiamos com o Direito, suas promessas e seus mitos [1]? Alguém duvida que há crenças e mitos no Direito, no discurso científico?  Duvida? E a “verdade real”, essa palavra tão bem quista no processo penal que, como diz Streck, não resiste a 1 minuto de discussão filosófica? E o que dizer do “livre convencimento motivado” do magistrado, como se se pudesse de fato despir-se do mundo da vida e ater-se tão somente aos autos do processo, produzindo, portanto, uma motivação “livre” e “racional”? Livre de quê(m)? O que a psicanálise tem a nos dizer sobre isso [2]? E o que dizer sobre os conceitos de “abstração” e “generalidade” da lei que aprendemos na disciplina “Introdução ao Direito”? E o que dizer – e isto é mais patético ainda! – da transposição desses conceitos – abstração e generalidade – ao Direito Penal? Alguém acredita, nessa altura do campeonato, que a criminalização primária – legislação – é feita de forma abstrata e geral, no sentido de que qualquer sujeito, potencialmente, poderia se encaixar a determinado tipo penal? Bom, esse é o discurso no atacado, já no varejo…

Mais: o que é o discurso científico? Para Warat a episteme nada mais é do que uma doxa politicamente privilegiada [3]. Resumindo: um senso comum rodeado de expressões para lhe conferir status de ciência, de tal forma que só será considerado verdadeiro o discurso que esteja conforme não uma “verdade”, mas conforme “a moda” e a “cumplicidade” de determinado número de pessoas.

Não foi a toa que o argentino – para mim, o maior jurista da América Latina – cunhou a expressão “senso comum teórico dos juristas” que, legitimado pelo monastério dos sábios [4], seria um “conjunto de crenças, valores e justificativas por meio de disciplinas específicas, legitimadas mediante discursos produzidos pelos órgãos institucionais, tais como os parlamentos, os tribunais, as escolas de Direito, as associações profissionais e a administração pública. Tal conceito traduz um complexo

de saberes acumulados, apresentados pelas práticas jurídicas institucionais, expressando, destarte, um conjunto de representações funcionais provenientes de conhecimentos morais, teológicos, metafísicos, estéticos, políticos, tecnológicos, científicos, epistemológicos, profissionais e familiares que os juristas aceitam em suas atividades por intermédio da dogmática jurídica”. Ao conceito de senso comum teórico poderíamos dar também o de “senso comum prático-forense dos juristas” [5]. Isto porque, a rigor, os juristas não detêm um repertório teórico sofisticado e autêntico. Valem-se, quando muito, das máximas da “prática forense”, conceito que seve para tudo e para nada. Um significante vazio, flutuante. Por isso que as obviedades jurídicas transmitidas pela dogmática não passam de construções retórico-ideológicas [6], carimbadas pelo senso comum dos Doutos e pelo monastério dos sábios.

Numa palavra: discurso científico e poder andam de mãos dadas. Quem não proferir seu discurso será tido como vadio, safado, marginal, louco, depravado. Como diz Foucault, para que algo pertença a uma disciplina, haverá de passar, antes, por pesadas exigências, para, só então, estar “no verdadeiro” [7].

Ainda com Foucault dou um exemplo. O autor se indaga a respeito do fato de como seria possível que os biólogos do século XIX não se dessem conta de que o que Mendel dizia era verdadeiro. Isto seria explicado da seguinte maneira: as ideias de Mendel não estavam no discurso biológico de sua época, portanto, não estavam “no verdadeiro” [8]. Estavam à margem. Mendel era, como dizia Foucault, um monstro verdadeiro [9]. Era, pode-se dizer, umvadio.

Portanto, a ideia de vadio, para mim, ganha tais contornos. Vadiar, em mim, quer dizer desconfiar da retórica dos juristas; de suas certezas; descobrir novas formas de se pensar o Direito, para além de cartesianismos. Vadiar quer significar produzir verdades poéticas, verdades não-ditas, veladas. Quer dizer, com Gadamer, desconfiar do método. Quer dizer, com Heidegger, propor não uma epistemologia do conhecimento, mas uma ontologia da compreensão [10], deslocando a problemática do conhecimento do método para o modo-de-ser. Quer dizer, com Warat, “cabarelizar” e “carnavalizar” a ciência jurídica. Quer dizer, com Marta Regina, “inscrever no espaço da academia da Faculdade de Direito saberes que foram deixados do lado de fora, no alpendre do prédio da modernidade”. Quer dizer, ainda com Marta, “trazer para o berço da razão moderna – a academia – o inesperado, a sensibilidade, a arte, a poesia e o amor”. Quer dizer, com Torquato Neto, desafinar o coro dos contentes. Quer dizer, com Foucault, falar desde umoutro lugar. Numa palavra: quer dizer fazer uma heteropologia [11]

E no dia que já não estiver escrevendo dessa maneira, desconfiem. No dia que escrever alguma coisa sem ironia, sarcasmo ou galhardia, desconfiem. Eu não consigo. É condição de possibilidade.

Rir faz bem à alma. Com Nietzsche, finalizo: “Talvez haja ainda um futuro para o riso! (…) Talvez então o riso se tenha aliado à sabedoria, talvez haja aí então uma ‘gaia ciência’” [12]. Pois é. Talvez haja então, um dia, a Gaia Direito.

Portanto, riamos. E vadiemos.

P.S.1: De fato, não dava para explicar o sentido de vadiar no facebook.

P.S.2: Gosto de dialogar com Nietzsche tendo em vista uma filosofia individual, privada. No entanto, se trouxermos o filósofo para a esfera pública, para uma filosofia comunitarista, política, creio que será no mínimoperigoso adotarmos alguns de seus conceitos…

 

Texto: Dyego Phablo

Fonte: a24horas.com

 

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