Bem vindo ao Deserto do Real: Das sociedades vazias de sentidos às desconexões em massa

 

Já dizia a letra daquela música do Engenheiros do Hawaii: “Eu presto atenção ao que eles dizem, mas eles não dizem nada” e logo me vejo transportado para um universo nostálgico e reflexivo como há tempos não me via... Tento compreender, procurar uma solução para todo este circo, mas é quase infrutífera a busca por respostas e significados em uma sociedade cada vez mais vazia de simbologias verdadeiras, ao passo que os verdadeiros enigmas, àqueles pelos quais se vale realmente morrer permanecem incógnitos e irreveláveis.

A sociedade apresenta uma velocidade de fluxo de compartilhamento de dados e informações tão grande, que o ser humano hoje é bombardeado constantemente por uma quantidade vertiginosa de imagens e sons que o atordoam de todos os lados e em todas as direções. Se por um lado nunca se pode estar presente em tantos lugares ao mesmo tempo quanto hoje, por outro são todos lugares desertos, preenchidos pelo vazio do real e da falta de sentidos e conexões verdadeiras, uma vez que a velocidade de fluxo não permite a realização de vínculos duradouros, pautando-se na formação de conexões e não de relacionamentos, já que se caminha para a construção de uma “rede global” ao invés de uma “comunidade global”, como assevera Bauman, quando analisa a fugacidade das conexões e a leviandade das atuais “relações”:

 

Diferentemente das “relações”, “parentescos”, “parcerias” e noções similares – que ressaltam o engajamento mútuo ao mesmo tempo em que silenciosamente excluem ou omitem o seu oposto, a falta de compromisso –, uma “rede” serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. Na rede, elas são escolhas igualmente legítimas, gozam do mesmo status e têm importância idêntica. Não faz sentido perguntar qual a dessas atividades complementares constitui “sua essência”! A palavra “rede” sugere momentos nos quais “se está em contato” intercalados por períodos de movimentação a esmo. Nela as conexões são estabelecidas e cortadas por escolha. A hipótese de um relacionamento “indesejável, mas impossível de romper” é o que torna “relacionar-se” a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma “conexão indesejável” é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las[1].

 

A temática levantada por Bauman, busca compreender justamente esse esvaziamento das chamadas relações humanas, que se configuram atualmente como meras conexões, e como a ausência de sentidos cria uma sociedade vazia e ilusória aonde os indivíduos estão fechados em suas próprias redes, aonde não se busca o reconhecimento do outro, mas sim uma mera utilização do outro como objeto de saciamento dos impulsos pessoais e narcísicos, até o desejo é posto de lado, ao passo que o próprio desejo já é deveras lento e desatualizado para essa sociedade aonde tudo acontece em um ritmo cada vez mais alucinante, aonde impera a pós-modernidade, com a amplificação maciça das relações de consumo, posto que o próprio desejo necessitaria de tempo para sua maturação e aproveitamento, tempo que os seres humanos atuais (pós-modernos) não podem perder:

 

Com a ação por impulso profundamente incutida na conduta cotidiana pelos poderes supremos do mercado de consumo, seguir um desejo é como caminhar constrangido, de modo desastrado e desconfortável, na direção do compromisso amoroso. Em sua versão ortodoxa, o desejo precisa ser cultivado e preparado, o que envolve cuidados demorados, a árdua barganha com consequências inevitáveis, algumas escolhas difíceis e concessões dolorosas. Mas, pior que tudo, impõe que se retarde a satisfação, sem dúvida o sacrifício mais detestado em nosso mundo de velocidade e aceleração[2].

[grifo nosso]

 

Desta forma chega-se à conclusão que nossa sociedade está passando por um processo de desertificação social, na qual esta se tornando cada vez mais difícil encontrar o outro em sua realidade e totalidade, seja pelo aumento considerável da imersão do ser humano nas chamadas relações virtuais, ou conexões, seja pela crescente falta de sentido que de uma forma quase que patológica vem nos infestando, culminando na formação de pessoas cada vez mais preocupadas com a satisfação narcísica de seus egos inflados, por meio das mais variadas ilusões, permitindo que a realidade se torne um grande deserto virtual.  De tanto procurar preencher sua existência o homem de nosso tempo acaba apenas por torná-la ainda mais vazia, por não compreender que o sentido da realidade só se revela quando se alcança a real liberdade, liberdade esta que se perde quando se busca o supérfluo e se deixa dominar por impulsos egoísticos e vazios de uma sociedade cada vez mais preocupada com aparências.

Tal perda de sentido e da possibilidade da liberdade por meio da prisão de impulsos assemelha-se á morte de Deus proclamada por Nietzsche:

 

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes de nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidade de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deus, para parecermos apenas dignos deles? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer arte, mercê deste acto, de uma história superior a toda a história até hoje![3]

 

Como colocou Nietzsche, o homem com a constatação da morte de Deus então passa a ser responsável por si mesmo, fato que pode ser interpretado hoje como a morte dos sentidos, daquilo que valia como alicerce para a sociedade em outras épocas, ocorre que a ausência total de sentidos é algo que se torna temerário tanto quanto a presença de sentidos deturpados e anacrônicos, surgindo assim, a necessidade de se criar novos sentidos que consigam manter a coesão social, do contrário o resultado é a degeneração e consequente aniquilação da mesma. O homem então passa a ser responsável por essa nova criação da sociedade, desses novos sentidos - na verdade sempre o foi, no entanto, em uma tendência de afastamento de responsabilidades delegou-as a outros fatores externos a seu ser.

 

BIBLIOGRAFIA

BAUMAN, Zygmunt. 1925 - Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich.1981 -  Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008


Referências

[1] BAUMAN, Zygmunt. 1925 - Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.12.

[2] BAUMAN, Zygmunt. 1925 - Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.27.

[3] NIETZSCHE, Friedrich.1981 -  Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008. p. 125.

 

Hamílcar Oliveira [#HAM23]