Jogo Perverso

O mundo estava em chamas, e fica assim toda vez que o tal do amor aparece, também é assim que começa Wicked Game, música que em seu título já resume bastante o significado do amor, ou melhor das interações sociais que se convencionou chamar de “amor”, um verdadeiro “jogo perverso”, e algumas vezes também perigoso – It's strange what desire make foolish people do – “é estranho o que o desejo faz as pessoas tolas fazerem”, ah sim, esse desejo insano de encontrar um outro ser para se compartilhar a vida, mas acima de tudo um desejo egoístico e por que não narcísico, de ser compreendido, de ter todos os anseios e dúvidas atendidos pelo ser amado, que no meio dessa jornada (porque não dizer desta verdadeira cruzada) deixa de ser o que é, e se transforma num fantasma criado pelas projeções íntimas do amante, que tal como Narciso, apaixona-se pelo próprio reflexo. O fato é que em determinado momento passa-se a amar mais nossa imagem refletida no outro do que o outro propriamente (ou talvez nunca se tenha amado este).

 

E assim prossegue a letra da música – I never dreamed that I'd meet somebody like you. – “eu nunca sonhei que conheceria alguém como você”. Talvez por que no final o “eu” não espera realmente conhecer o ser amado, aquilo que deseja com tanto afinco, aquilo que anseia mais do que tudo em sua vida, porque muito provavelmente, esse ser amado é uma projeção de alguma necessidade interna, e a razão do desejo está justamente no fato de este não poder ser realizado, de não poder ser alcançado, de permanecer abstrato, uma vez que assim permanecerá sempre jovem, belo, e infatigável pelas mazelas do dia-a-dia. E - I never dreamed that I'd meet somebody like you – “eu nunca sonhei que perderia alguém como você”, justamente pelo mesmo motivo; a perda, ou  nessa situação, o término é algo como mero contratempo na busca do amor, na eterna cruzada pelo Graal da suma felicidade, ao passo que quando se termina um relacionamento, as desculpas são as mais variadas possíveis, dentre elas: “Ela não servia pra mim”; “Ela ainda não era a pessoa certa”; até o clássico “Foi melhor assim”, para garantir que desta forma o ser amado persista, mesmo que o relacionamento tenha chegado ao fim, o desejo ainda continua, por que o “eu” ainda persiste; e em seu desejo quase que antropofágico de unir-se ao ser amado, ou pelo menos ao indivíduo que venha a atender à projeção daquele, como bem observa Bauman:

 

 

Todo amor é matizado pelo impulso antropofágico. Todos os amantes desejam suavizar, extirpar e expurgar a exasperadora e irritante alteridade que os separa daqueles a que amam. Separar-se do ser amado é o maior medo do amante, e muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez por todas do espectro da despedida. Que melhor maneira de atingir esse objetivo do que transformar o amado numa parte inseparável do amante? Aonde eu for você também vai; o que eu faço você também faz; o que eu aceito você também aceita; o que me ofende também ofende a você. Se você não é nem pode ser meu gêmeo siamês, seja meu clone.

 

O resultado é então o esvaziamento do ser amado, posto que o amor é dedicado à projeção do amante e não ao sujeito que recebe esta projeção, e assim em dado momento quando se retorna o olhar para o objeto (ou quando realmente se lança um olhar mais apurado sobre este) que assume as vezes do “ser amado”, percebe-se que este é mera sombra, que já não atende os anseios do amante. Ao final da música percebe-se a última frase, que mais parece um sussurro, o que aumenta ainda mais sua carga apoteótica da revelação: Nobody loves no one – ninguém ama ninguém.

 

 

Referências

BAUMAN, Zygmunt. 1925 - Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p.32.

 

 

 

#HAM23